À descoberta do Sul da Índia, uma viagem na mítica moto Royal Enfield, pelos estados do Kerala e Karnataka, entre 6 e 21 de Março de 2010. Partindo de Kochi rumo a Goa, por estradas junto à costa e incursões pelos Ghats Ocidentais, vamos conhecer as gentes, os mosteiros e templos, admirar as paisagens, visitar reservas naturais .... enfim, juntar dois amores: Viajar e andar de moto.

Se apareceu pela 1ª vez, leia do fundo para cima ou use os tópicos no lado direito da página. Se está a voltar, obrigada. Em qualquer dos casos, se tiver comentários, são muito bem-vindos.

Gosto disto ...

Segunda-feira, 15 de Março de 2010

Ao pequeno-almoço serviram-nos torradas com manteiga, fruta e café com leite, como de costume desde que chegámos. O dono do hotel veio cumprimentar, homem simpático, na casa dos 60 anos, chapéu colonial, camisa e lenço enrolado no pescoço, ar distinto. Devia ser respeitado ou temido pois assim que apareceu os empregados começaram a trabalhar mais depressa, um deles parecia uma barata doida a correr de um lado para o outro a trazer as coisas.

Saímos tarde hoje. Não porque estava planeado mas porque estamos no Karnataka e o motorista do carro de apoio tem de ir buscar a licença de condução para este estado. E a repartição só abre às 10:30H. Mal saímos da cidade a polícia mandou parar. Até parece que queriam festa, mas estava tudo em ordem.

Vamos andar por estradas secundárias, desde Madikeri até Hassan, 132 km. E a estrada é linda, campos cultivados, coqueiros, muitas árvores. Está fresco, pouco trânsito, o piso é razoável, por vezes picado, por vezes terra, mas não há trânsito. Rolámos satisfeitos naquela paisagem fabulosa, pequenas aldeias com casas de alvenaria e telhados com telha, pintadas de várias cores, umas verdes, outras rosa, outras amarelas.



Sempre em estradas rodeadas de vegetação muito verde, bambus, arbustos e flores, parece que estamos num jardim colorido e suave. Os campos cultivados alinham-se em quadrados de diferentes tons de verde e com várias alturas de plantas. Tufos de bambus alternam com manchas de bananeiras, sempre com a floresta de coqueiros ao fundo. Espalha-se o olhar, sente-se o cheiro de folhas molhadas, a terra é vermelha, esta é uma boa estrada rural. Rolamos em ritmo suave, sem pressas e sem carros. Decididamente gosto do campo.

Parámos numa pequena cidade para almoçar, num restaurante minúsculo e típico. Tinha duas mesas corridas em cada parede. Serviam apenas arroz, peixe frito e molhos. Tudo picante, excepto o arroz branco que tinha um gosto aromático fabuloso. Só comi arroz. Alinhados como os meninos da escola nas carteiras, uns comeram com as mãos, outros conseguiram uma colher. Sobremesa, chá, como de costume.



A tarde correu pacífica naquela paisagem bucólica, perdemo-nos uns dos outros num cruzamento por aí, juntámo-nos de novo, nada a assinalar. Estamos de férias. Cada vez há mais vacas pela estrada, sozinhas ou em manadas, umas vezes com o dono a acompanhar, outras não. Cada vez que as vejo ao longe, reduzo, andam por onde lhes apetece, até os camiões param e se desviam.

A meio da tarde chegámos a Hassan, entrámos na confusão de carros, de trânsito, de fumo negro, de gente. O Hotel é no meio da cidade. Finalmente um hotel com internet, com água quente, com ar condicionado. Gosto disto ...

Distância: 132 km

Percurso: Madikeri – Somavarpep – Shenivarchande - Hasan

 
 


 
Domingo, 14 de Março de 2010

Alvorada ao som dos pássaros, aquele cantar contínuo de trinar e gritos que nos acompanha durante toda a noite. Hoje tivemos de alterar os planos, disseram-nos que a estrada por onde iríamos até Madikeri está em obras e cortada ao trânsito. Fomos por uma estrada secundária, uns quilómetros a mais que o plano mas que promete ser mais interessante. Sair de madrugada para a estrada é uma boa táctica neste país, a temperatura está fresca, as lojas estão fechadas, não há carros, não há gente nas ruas.

Os primeiros 80 km foram pacíficos, a planície espalha-se pelos nossos olhos. Conseguimos rolar depressa, está pouco trânsito. Hoje é Domingo. Quando começamos a subir para as montanhas a estrada encolhe, o piso está picado e cheio de buracos. Por vezes a vegetação é tão densa que as árvores cobrem a estrada de sombras que intervalam com pequenos raios do sol que furam por entre a vegetação.

Parámos numa banca de estrada. Numa estrada fora de qualquer povoação estava uma carripana de madeira com rodas de aro e um estaminé montado. Tinha em pequeno expositor de madeira e vidros onde se exibiam uns bolinhos fritos, bolachas e onde uma mulher cortava tomate e cebolas para uma salada e amanhava uns peixes pequenos. Por detrás, um caldeirão de ferro numa fogueira tinha um caldo que fervilhava e cheirava bem. Uma cafeteira enorme fervia água. Ao lado, dois alguidares de ferro com água era a zona de lavagens. Tinham um avançado de lona com duas mesas e umas cadeiras. Ali naquele fim do mundo, estavam meia dúzia de homens, sentados a ver os números da lotaria e a beber chá. Pedimos chá com leite. Fiquei ali a observar o homem que lavou os copos com água a ferver, misturou o chá, passou o leite por um coador e serviu. Debaixo das árvores, uma banca de estrada minimalista era um ponto de encontro de pessoas que não sei de onde vinham, não havia casas à vista nem havia carros estacionados. Mas o negócio devia ser rentável pois adivinha-se a preparação de várias refeições.





Almoçámos num restaurante à beira da estrada com um menu extenso que demorou um bocado a decifrar. Acabamos a pedir coisas que já conhecíamos e que vieram tão picantes que fez o Pedro ter saudades de Nestum e de Cerelac. Entre a sala e a cozinha tinha uma janela, tipo guichet, com diversos tipos de avisos e uma campainha, parecia uma repartição.

Depois do almoço começou uma prova de perícia, um todo-o-terreno por caminhos da Índia. A estrada é um recorte de bocados de alcatrão, com uma sucessão de buracos e uns bons quilómetros de crateras lunares. Toda a vantagem de tempo que tínhamos ganho de manhã se perdeu nestes 30 km de suor, buracos, pedras e areia. Floresta de um lado e do outro, algumas aldeias de poucas casas e buracos sem fim. Quando finalmente apanhamos estrada com alcatrão picado até parecia uma auto-estrada grande e lisa.






O alojamento é uma casa enorme de tijolo vermelho e telhado de telha, no meio de uma plantação de café. À nossa volta, árvores, um pequeno lago de águas pardas e plantas de flores brancas a perder de vista. Estamos num alto, com a plantação como paisagem onde devem andar centenas de pássaros tal é a cantoria.

Nos hóteis onde temos ficado há águas quentes e frias ... conforme o tempo. Se está calor temos água quente. Depois do todo-o-terreno de hoje apetecia-me um banho quentinho. Aqui, na encosta da montanha está frio. E a água está gelada. Até me faltou a respiração quando entrei no chuveiro. E para ajudar, o chuveiro é intermitente, tive de tomar duche em etapas não fosse ficar sem água e cheia de sabão.

Pensava eu que cá para cima não havia tanta poluição. Enganei-me. Cada vez que passo um pano pela cara saí preto. Até no interior onde não há tantos carros. Desde que chegámos cá que se percebe uma neblina no ar, ainda não vi um céu completamente azul como o das fotografias de turismo. A poluição na Índia é terrível, escurece tudo, o blusão já mudou de cor, está manchado de cinzento, ao fim do dia a pele está escura, quando lavamos a cara a água fica preta. Depois a humidade cola tudo à pele, o calor coze, parece que temos uma película de gordura escura pelo corpo todo. Já nem acredito no sabonete, só me sinto lavada com sabão azul e branco que faz espuma cinzenta, tal é o fumo dos carros e camiões. Um fumo espesso, negro, que se espalha no ar e suja tudo à sua passagem. Nem nas montanhas o ar é limpo.

Estou na varanda a escrever a crónica do dia, sob uma lâmpada mortiça que mal ilumina o teclado. O monitor dá mais luz que a lâmpada do tecto e faz as delícias dos mosquitos e melgas que dançam à frente das letras e não me deixam escrever. Resolvi o problema, besuntei o PC com repelente de insectos.

Distância: 220 km

Percurso: Kannur – Koothuparmbu – Mananthavaoi – Gonikoppa – Virajpep - Madikeri








Sábado, 13 de Março de 2010

E ao sétimo dia Deus descansou. Nós também. Depois de uma noite bem dormida, embalada pelo canto dos pássaros e os gritos de animais nocturnos que nos acompanharam a noite toda, hoje é dia de dormir até tarde, de moleza, de ficar no alpendre a conversar e beber chá, a relaxar os músculos do esforço de conduzir pelas estradas caóticas da Índia. A casa está encaixada na vegetação, as folhas das bananeiras entram pelas janelas, ao fundo ouve-se o barulho ritmado das ondas na praia. Está muito calor, está uma sauna de humidade, as ventoinhas estão no máximo.




Consegui acabar as crónicas dos últimos dias e escolher as fotos para o blogue. Há um ciber café na estrada principal, a uns 5 km de distância. Fica num primeiro andar, tem uns compartimentos minúsculos onde cabe uma pequena mesa e uma cadeira. Enquanto estava a actualizar o blogue ouvia os sons dos jogos electrónicos que alguns miúdos jogavam. Parecia que estava na guerra, com barulho de tiros e exclamações de guerreiros. Para se entrar tem de se tirar os sapatos, como nas casas e nos templos e em muitos outros locais.

Ao final da tarde chamámos dois rickshaws para ir ver um “Temple festival” e foi mais um festival chegar até lá. Quatro passageiros mais o condutor naquela casquinha a acelerar por estradinhas entre aldeias perdidas na floresta, subidas e descidas íngremes, cheias de buracos, umas partes da estrada em terra. Mais uma aventura.

A festa do templo realiza-se uma vez por ano, para celebrar a colocação da primeira pedra da construção do templo e a instalação do Deus. Esta festa vai durar quatro dias e é dedicada ao “They Yams”, três deuses – Sree Rama, Fighter e Siva. São representados por homens, com fatos coloridos e de corpo e cara pintados segundo os preceitos da divindade que encarnam. Quando chegamos estavam os três a ser pintados e depois vestidos. Enquanto o ritual decorre, padres fazem oferendas aos deuses, nove no total. Com pétalas de rosas, folhas de bananeira, coco, arroz e cadeias acesas, os padres rezam, tocam campainhas e salpicam as pessoas com um líquido tirado de uma taça. Um grupo de homens de saia comprida branca – Lungui – toca tambores, num compasso ritmado e monocórdico. Cheira a incenso.

As mulheres usam saris coloridos, de cores lisas ou estampados, rosa, azul, verde, violeta. Todas têm as unhas dos pés pintadas, algumas jóias, sentam-se numa grande escada para ver a celebração. Andamos todos descalços no espaço do templo, uma grande área com cinco pequenas construções de madeira trabalhada, com pequenas candeias penduradas nas paredes e um altar interior com a representação do deus. As pessoas fazem ofertas de dinheiro numa bandeja, ajoelham nos altares, rezam, molham o dedo numa taça com um pó e marcam a testa e a garganta. Significa que estão abençoados. Os tambores continuam a tocar e as pessoas circulam por entre os diversos locais de culto, além dos cinco templos há também mais quatro pedras que marcam a presença de outros tantos deuses. O cheiro a incenso circula por entre os devotos, empurrado pela ligeira brisa.

Quando os homens acabam de ser pintados e vestidos começa o espectáculo, um grupo de jovens em tronco nu, todos com uma lungui branca e faixa vermelha na cintura, dá várias voltas aos pequenos templos, acompanhados pelos tambores, os padres e crianças com grandes varas finas e pintadas. Param num largo e dançam “Kalaripayattu”, uma dança tradicional, quase uma arte marcial. Ouvem-se tambores, cheira a incenso. E os rituais continuaram com outras representações e danças, vai durar a noite toda.





.

6 comentários:

  1. Que bom terem internet, é sinal de que vamos conhecendo mais e mais desse país e desse povo cheio de crenças e hábitos tao diferentes!!Pelos vistos vao chegar a Portugal bem "bronzeados de poluiçao"!! Desejo-vos uma boa e ultima semana de viagem.
    Isabel Casaca

    ResponderEliminar
  2. E o tempo passa num instante! Já é 15 de Março, 16 no calendário do blog!
    Continuem a respirar o ambiente, mesmo que às vezes bem poluído, e vão-nos prendando com o vosso sentir nas palavras da Paula.
    Por cá a coisa mais emocionante foi o facto de há 3 dias não chover e ter havido SOL no fim de semana!!
    Boa viagem! Buzinem bem!

    ResponderEliminar
  3. Viagem maravilhosa.
    Zona que ainda não andei de mota. Como gostaria...
    Tudo de bom vós companheiros/as.
    Antonio Casteleiro

    ResponderEliminar
  4. E a Estrada das Especiarias chegou à intranet da Deloitte, no After Hours! :-)
    Os meus informadores da aldeia global já me vieram soprar aos ouvidos!
    Gostei!

    ResponderEliminar
  5. Tudo muito bem, mas não achei piada nenhuma em saber que o (meu) PC foi besuntado com repelente!! :-( ;-) Estou a adorar a crónica, especialmente a descrição do 'temple festival'. De facto as tuas linhas transportam-nos para esse país de tantos contrastes. Continuação de boa aventura para todo o grupo!

    Zé Paulo.

    ResponderEliminar
  6. Zé Paulo, vai ser uma poupança em antí-vírus!;-)

    ResponderEliminar