Quinta-feira, dia 18 de Março de 2010
Depois da tempestade vem a bonança. Hoje é dia de descanso, o sol brilha. De manhã vamos até Gokarna, vila cheia de templos, muito frequentada por turistas. À entrada um mercado, bancas de chão, um pano comprido para exibir fruta e legumes, peças em latão, plásticos, sacos com especiarias, cheiros intensos. Uma rua principal cheia de lojas de roupa colorida, colares e pedras, ao fundo uma pequena praia.
Estreitas vielas dão acesso a pequenos templos, simples, despidos de grandes ornamentos e vestidos de misticismo. Um arco colorido de rosa, azul, amarelo, verde, com figuras de deuses, marca a entrada de mais um local de culto. Lá dentro, mulheres idosas descalças, rezam e andam à volta do altar, num rodopio ritmado pelo passo e por uma fala monocórdica. Levam pétalas de flores e óleos para oferecer aos deuses, falam com eles, ajoelham, dão voltas apressadas. Saem e vão para o próximo templo, uns metros mais abaixo da rua movimentada, outro local de silêncio e oração. Casas quadradas, em pedra, altares com representações de deuses, paredes pintadas há muitos anos a precisar de restauro. O chão é em mosaico de várias cores, cheira a incenso, reina a penumbra.
A vida de Gokarna continua cá fora. A rua principal está cheia de gente, as vacas passeiam-se soberanamente à procura de comida. Uma azáfama de rickshaws que passam a correr com turistas. Há muitos ocidentais de diferentes nacionalidades, magros, vestidos com panos, descalços, rastas, jovens de cabelo comprido e barbas, misturam-se com os indianos. Têm o olhar brilhante, conhecem-se todos, juntam-se nos cafés a trocar experiências de vida.
À entrada das lojas estão os chinelos dos clientes, lá dentro prateleiras cheias de panos coloridos, sacos com desenhos exóticos, tapetes de recortes, calças e blusas com padrões de flores e cores, muitas cores. Cheira a incenso. Aqui também se negoceiam os preços, geralmente caem para metade da oferta inicial, os indianos choram-se com os descontos, pedem mais cem rupias, dizem que precisam ter um pouco de lucro, acabam por vender.
Alguns lojistas, homens magros e secos, estão sentados de pernas cruzadas, lêem e rezam. Há minúsculos altares encavalitados nas mercadorias, pequenas fotos de deuses e paus de incenso a queimar. Vendem peças em latão, sacos com pós de várias cores fortes, livros com capas douradas e figuras de deuses. A quatro quilómetros da vila, a praia “Om Beach” é o atractivo da região. Areia branca, mar quente e barcos de pesca com nome de “Fátima” e .......... vacas.
Quarta-feira, dia 17 de Março de 2010
Hoje batemos o recorde! 280 km em estradas na Índia é uma odisseia. Estrada com bom piso, larga e pouco trânsito. A manhã correu calma e nós corremos pela estrada, rodeada de vegetação, árvores, bambus, arbustos, plantas de café, bananeiras, campos cultivados em quadrados alinhados. Lindo a perder de vista.
Uma das motos avariou, não tinha força, engasgava na aceleração. O mecânico puxou do saco das ferramentas e, à beira da estrada, num ápice, desmontou o depósito, tirou o filtro, soprou, desapertou a cabeça do motor, mexeu numas peças e lá pôs a moto a andar, no meio do pó e areia da berma, óleo a cair, um trapo sujo, chave de parafusos no bolso detrás das calças.
Começámos a descer a montanha rumo à costa, descidas largas, vegetação densa. Visita às cascatas de Jogg Falls, uma impressionante falésia onde outrora caía uma tão impressionante cortina de água. Nos últimos anos não tem chovido o suficiente para encher as cascatas e os olhos dos turistas. Mas a escarpa de pedra está lá, altíssima e vertiginosa. É um ponto de turismo, tem um pequeno aglomerado de casas em U, parecem as lojas de Fátima. Mas aqui não se vendem recordações, as lojas são pequenos restaurantes, de tachos em metal reluzente, um pequeno fogão de campismo, duas mesas de plástico com cadeiras, um frigorífico com 50 anos. As mulheres chamam-nos, dizem-nos o que podem cozinhar. Omeleta de pão, arroz frito com legumes, massa com legumes, banana em massa de ovo e farinha. Está calor, muito calor, o ar é húmido, uma vaca passeia-se no terreiro à frente dos pequenos restaurantes.
Depois de uns litros de água e uma taça de arroz, voltamos à estrada. Mas o céu escurece de novo, rapidamente a chuva volta. Ainda temos 140 km de estrada, vestimos os impermeáveis e decidimos continuar. Mas a natureza não permite. A cortina de água pesa, pica por cima dos fatos, inunda tudo. Temos de parar, uma pequena aldeia abriga-nos do temporal. Raios e trovões iluminam os céus, atordoam os ouvidos. As pessoas olham com curiosidade para os estrangeiros molhados, impávidos perante o dilúvio. A atmosfera é densa, quase custa a respirar. A humidade entra no nariz, molha os ossos.
Acabou de chover tão depressa como começou. A estrada está encharcada, as nuvens vão embora, o sol aparece. Montanha abaixo, por uma estrada estreita e com curvas, a floresta acompanha-nos, árvores frondosas, um emaranhado de ramos, densa, impenetrável, a vegetação cobre a estrada. O sol aquece o alcatrão, a água da estrada evapora. Rolamos sob uma neblina ténue, vê-se a água a evaporar, avançamos a cortar o ar espesso, sente-se o cheiro da floresta, ouvem-se os ruídos dos animais e o canto dos pássaros. Estamos num outro mundo, num planeta diferente de tudo o que conhecemos, sente-se que a floresta nos esmaga. O verde é fabuloso, a natureza está viva, invade os sentidos, diz-nos que não somos nada, somos apenas uma pequena folha a pairar pela estrada.
Numa curva apertada está um camião virado ao contrário, cabine desfeita, sacos espalhados pela estrada. O condutor está sentado à beira da estrada a guardar a mercadoria. As vacas reaparecem, os búfalos, as galinhas, os carros, os rickshaws, estamos na planície de campos cultivados de tons de verde, estamos próximo da costa e do mar. Chegamos a Gokarna ao final do dia, a tempo de ver o pôr-do-sol.
Distância: 280 km
Percurso: Bhadra – Shimoga – Sagar – Jog Falls – Honnovar - Gokarna
Terça-feira, dia 16 de Março de 2010
Vacas. Não acabam, não saem da estrada. Vacas e búfalos nesta região são os reis da estrada. Os reis das aldeias, vilas e cidades. Vacas brancas com grandes chifres em forma de V fechado, vacas pretas com chifres curtos, búfalos castanho-escuro com chifres enrolados para trás, não saem do caminho, estacionam na estrada, andam em bandos, calmamente.
As vacas e os búfalos são o terror. Lá ao longe parecem vultos pacíficos, abanam a cauda com moleza. Quando nos aproximamos, mexem-se, viram-se e decidem atravessar a estrada. Outras já lá estão, mesmo no meio do alcatrão, olhar longínquo como se estivessem no meio de um pasto verdejante. Não arredam pata. Manadas de búfalos correm na berma, assustam-se com o barulho, fogem para todos os lados. Para a estrada, para cima de qualquer veículo que passa e que tem de se desviar, travar, rezar aos santinhos para conseguir não bater nestes animais.
Os autocarros travam de repente, curvam o desvio, as rodas traseiras andam de lado. Todos buzinam para assustar os animais, para os fazer andar dali para fora. Todos parecem estar habituados aos obstáculos de quatro patas. Nem os donos, que por vezes se vêm a acompanhar as famílias de vacas e bezerrinhos, fazem um pequeno gesto para as tirar de lá.
Quanto mais subimos para Norte, mais animais na estrada. No estado do Karnataca, o desafio do trânsito de motos, rickshaws, camiões e autocarros é potenciado pelas pachorrentas vacas e pelos assustados búfalos. As povoações são um labirinto que se atravessa com dificuldade.
A parte da manhã foi passada entre vacas e templos. 40 Km a norte de Hassan há dois grandes templos que fomos visitar. Saímos cedo, direitos ao templo de Halebidu, dedicado ao deus Siva. Um maciço de pedra negra, atarracado, místico, artístico. Um jardim relvado dá entrada a um fantástico trabalho de baixo-relevo e recortes em pedra de um templo escuro e fresco, onde a calma reina. Pequenas figuras de deuses e cenas divinas passeiam-se ao longo das paredes, contam uma história, a reluzir ao sol.
Lá dentro, descalços, reina a penumbra, o sol entra apenas pelas quatro portas dispostas em quadrado. Figuras do deus Siva, com vários braços e pernas, armaduras e ornamentos estranhos olham para nós. Ouve-se o cantar monólogo de um monge, sentado no chão com um livro no colo. Os devotos ajoelham e deitam-se numa pedra redonda no centro, virados para a estátua do deus e rezam. O monge canta, grita. De resto o silêncio, ouve-se o silêncio das pedras, adivinham-se as histórias naquelas paredes trabalhadas. Numa capela interior está um padre a limpar um altar redondo, em pedra. Tem uma caixa para oferendas e uma vela acesa. Todas as paredes estão repletas de silhuetas recortadas na pedra, altares, todas as colunas estão trabalhadas, é tudo negro, convida a sentar e pensar ao som da reza do monge.
À volta do templo a azáfama da cidade, vendedores de recordações, miniaturas do deus em ferro, mapas e guias do templo. E bancas de fruta e lojas de tudo e carros e autocarros e vacas. Está calor.
Rumo ao segundo grande templo, em Belur, um par de quilómetros. A entrada da cidade é uma avenida grande de casas térreas, sujas e semi-desfeitas, uma avenida cheia de movimento, cheia de Índia. Ao fundo uma construção imponente. Brilha ao sol, uma porta gigantesca e dourada, a entrada do templo. A porta tem muitos metros de altura, domina a cidade. Figuras de deuses trabalhadas na pedra passeiam-se nos vários andares de histórias e lendas, olham para nós, estáticas, brilhantes, superiores. Lá dentro, o templo em pedra escura, altares de culto, diferentes espaços para diferentes deuses.
A seguir ao almoço o céu escureceu, as nuvens correram a tapar a terra. Levantou-se o vento. Cada vez mais vento, rajadas que abanam as árvores, vergam as folhas dos coqueiros, levantam a terra, agitam a tarde. No meio de uma névoa de areia íamos rolando pela estrada, apreensivos. Vai chover. Ao que parece há muitos anos que não começa a chover tão cedo, ainda não está na época de monções. À medida que avançamos o vento fica mais forte, vamos subindo a montanha, vamos vendo as folhas a rodopiar pelo ar, as pessoas vão desaparecendo. Por vezes a estrada está cheia de pequenos troncos arrancados das árvores. E começa a pingar, primeiro lentamente, depois forte. Tão forte que tivemos de parar numa paragem de autocarro deserta para nos abrigarmos da intempérie. O céu ilumina-se com raios de luz, faíscas repartidas no horizonte, rápidas, fulminantes. Ouvem-se trovões, partem-se os céus. E a chuva cai, forte e densa.
Uma moto pára junto a nós e um homem com duas crianças abrigam-se na paragem de autocarro já cheia de turistas pasmados com a chuva. O mais pequeno não pára de olhar para nós, boca aberta, olhar curioso. Escondido atrás do pai não tirava os olhos de nós, alheio ao barulho dos trovões, impávido perante a chuva. E ela continuou a cair por mais de uma hora, bátegas grossas parecem granizo, a paisagem ilumina-se com os raios e escurece com o véu de chuva. O horizonte está branco. A estrada escorre terra vermelha diluída na água, forma regos que serpenteiam pelo alcatrão. Deitei-me no muro corrido que serve de banco e adormeci de cansaço.
Com as últimas pingas ainda a cair decidimos voltar à estrada. Faltam 60 km até ao destino de hoje, Bhadra, uma reserva natural situada bem no meio dos Ghats ocidentais, lá no cimo da montanha. A subida íngreme, com curvas apertadas e piso picado, foi feita lentamente. O cheiro é intenso, terra e folhas molhadas, atmosfera densa e húmida. A estrada brilha do óleo ou gasóleo deixado pelos carros e que a água não lavou. O ar está cheio de insectos, borboletas que se esmagam contra a viseira do capacete. A floresta é fechada, verde, muito verde, rica de plantas e árvores, o cheiro entra em nós, chama-nos, lembra-nos que fazemos parte da terra.
Junto à reserva natural “Bhadra Wildlife Santuary” há um hotel composto de pequenos bungalows de madeira, encavalitados na encosta do lago, escondidos na vegetação. À noite ouve-se o som dos animais, o grito das aves e o barulho da água do lago, empurrada pela brisa, a bater nas margens. Os guardas fazem patrulhas de rotina na reserva e reportam, num quadro branco na sala de refeições, os animais que avistaram. Ontem viram um leopardo.
Distância: 140 km
Percurso: Hasan – Halibeed – Beure – Chikmanglore – Pelkeri - Bhadra
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